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O trabalho corporal: da experiência com o brincar à linguagem da dança a partir da cultura popular


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Deise Alves



Resumo: O texto discute as contribuições da cultura popular para o ensino da dança contemporânea para crianças e, num sentido mais amplo, sua formação psico-social. Propõe a construção de um paralelo com os mecanismos tradicionais de transmissão do conhecimento popular, destacando o lugar central das atividades lúdicas na infância e o brincar para o adulto, no brinquedo popular (fantasiar/ representar), como promotores da criatividade e diversidade.


Palavras chave: Dança – ensino da dança – danças brasileiras – cultura popular – pedagogia infantil – transmissão oral do conhecimento – criatividade


O grupo de estudos do projeto “Põe o dedo aqui”, que motivou a elaboração deste texto, desenvolveu discussões sobre o ensino da dança contemporânea para crianças, tendo como suporte uma dimensão central e definidora da dança contemporânea: a sua diversidade, a abertura para as práticas de improvisação e a liberdade de leituras originais e personalizadas ao tecer esta linguagem.

Minha área de investigação é o universo da cultura popular e, neste sentido, busco contribuir para a discussão com algumas indagações: Sobre qual dança falamos quando nos referimos à infância? Qual a importância do brincar no ensino da arte? Em que medida o ensino das danças populares brasileiras às crianças corresponde à linguagem da dança contemporânea?

Em minha experiência profissional com crianças, em aulas bem definidas como “danças brasileiras”, sempre tive como objetivo proporcionar o ensino da dança em seu contexto mais amplo, tanto artístico quanto cultural. Antes de qualquer outro conteúdo, considero os aspectos do desenvolvimento infantil e quais são as necessidades fundamentais nesta etapa da vida.


Brincar

Em Por que as crianças brincam, definindo o papel formador das atividades lúdicas para elas, Winnicott formula: “a brincadeira fornece uma organização para a iniciação de relações emocionais e assim propicia o desenvolvimento de contatos sociais (...)” (1982, p. 163). A criança, ao brincar, exercita um jogo simbólico, soluciona questões internas e externas que a definem individualmente e a preparam para viver em sociedade. “(...) pode-se facilmente ver que as brincadeiras servem de elo entre, por um lado, a relação do indivíduo com a realidade interior, e por outro lado, a relação do indivíduo com a realidade externa ou compartilhada”. (idem, p. 164).

Relacionando-se estas reflexões com os estudos sobre cultura popular, pode-se afirmar que: em sociedade, o homem, por meio das manifestações da cultura tradicional na sua dimensão artística – dos chamados brinquedos –, também revive e supera questões, apropriando-se inconscientemente de conhecimentos ancestrais inscritos nos arquétipos, signos e símbolos da cultura, de todas as linguagens, principalmente a do movimento, que permeia todas elas e que representa a primeira forma de relação com o mundo na infância.


Dançar

Bourcier, em seu livro sobre a história da dança no Ocidente, destaca o caráter transcendente, sagrado da dança: “Desde já, a dança nos leva além do simples movimento” (2001, p. 7). Luis da Câmara Cascudo, um dos nossos primeiros e maiores folcloristas do século XX, recupera, de alguma maneira, sua secularidade, evidenciando a presença da dança nos mecanismos de transmissão e perpetuação da cultura: “Teria sido a mais antiga manifestação oblacional, a primeira manifestação grupal de homenagem às forças sobrenaturais (...). As danças só podiam ser expressões sagradas, depois, o instinto lúdico diversificou-as” (2001, p.178 e 179).

A dança, neste contexto, surge como manifestação cultural, como um dos textos produzidos pelo homem. Estes textos, como quer Baitello Jr. (1999), possuem caráter sígnico, constituindo uma linguagem que obedece a determinado código – conjunto de regras de funcionamento – que comunica, informa e, por meio simbólico, resolve questões existenciais que não alcançam formulações racionais, sintetizando-as à semelhança do que ocorre na infância.

O instinto lúdico citado seria, para Winnicott (idem), o espaço entre a realidade e a fantasia ou o espaço potencial da criatividade individual, do devaneio, o sonho acordado. Reforçando este argumento, Baitello Jr. defende que este espaço está diretamente ligado ao sono ou ao descanso do estado de alerta para a manutenção da sobrevivência. Juntamente com o sono vem o sonho, que quer superar questões insolúveis na vida real, oferecendo impulso para a imaginação.


“Do sonho vem a primeira inspiração, mas também do sonho acordado, do devaneio, do delírio jorram idéias, imagens, verdadeiros textos que possibilitam a criação de mitos, de ritmos, de histórias. Também do sonho nasce o jogo, o brinquedo, a simulação (...). No homem a atividade lúdica se estende por toda a vida e é fonte de fortalecimento de sua criatividade e, portanto, de suas forças” (1999, p. 31).


Aos poucos, o que era brincar para a criança permanece como devaneio e fantasia para o adulto. Os artistas, por exemplo, tornam isso concreto em suas obras. Assim como os brincantes, artistas populares, o fazem em seus folguedos. Note-se que estas celebrações populares, que estabelecem o encontro regular entre a tradição e a vida cotidiana, carregam esta idéia já no nome: são chamados brinquedos por seus próprios artífices. E são, de fato, um momento da vida comunitária em que seus participantes realizam festas à maneira de seus mestres, seus ancestrais, mas nunca podem deixar de corresponder ao seu próprio tempo, de fazer com que a celebração diga respeito às necessidades atuais da comunidade.

Neste mesmo processo de perpetuação da sua cultura, os brincantes renovam a tradição, recriam-na, exercitando precisamente a criatividade referida acima, que fornecerá as soluções simbólicas para superação de problemas antigos e atuais. A cultura popular traz em si o seu próprio brinquedo e deste modo poderíamos dizer que potencializa, em âmbito coletivo, o espaço potencial entre realidade e fantasia, o espaço da criatividade necessária à solução dos novos desafios.

Outro aspecto central neste mecanismo de manutenção das tradições é que as celebrações populares realizam, ao mesmo tempo, sua reafirmação e sua renovação. Isto é próprio do caráter oral da sua transmissão e é ainda condição para que exista esse exercício da criatividade. Nos brinquedos, encontram-se as tarefas do mestre e do aprendiz. Ao transmitir seus conhecimentos, o mestre aprende sobre as necessidades atuais de sua cultura e, ao apreender a tradição, o aprendiz descobre a maneira como deverá transmiti-la em seu tempo.


Ensinar com criatividade

Valorizar o lúdico e buscar atividades coerentes com este princípio foi o que me levou a apresentar cultura popular às crianças. Pesquisar, aprender e ensinar danças da cultura brasileira são, assim, um exercício dos processos de ensino-apredizagem observados e vivenciados em campo.

Tal referência fornece muito mais do que um simples repertório de movimentos e atividades para as aulas: aproxima o trabalho pedagógico da maneira de funcionar das próprias tradições. A cultura popular valoriza o lúdico e isso é o fundamental nessa fase do desenvolvimento do ser humano. Permite transmitir o conhecimento sem interferir no processo natural das crianças de apreender novas informações a todo o momento.

O que é transmitido pelo professor/mestre, ou no convívio com as outras crianças, está inscrito em seu corpo e movimentos e é, sobretudo, através destas dimensões sensíveis que será aprendido pelo aprendiz.

Ao mesmo tempo, cada aprendiz amplia com criatividade, em seu gesto, a dança que perpetua a tradição, tornando o seu movimento único e pessoal, referente às suas questões atuais e experiências de vida.

Agora, entrelaçados os universos lúdico, tradicional e artístico, Winnicott nos ajuda a entender o lugar da criatividade no processo pedagógico:


“A criança adquire experiência brincando... Tal como as personalidades dos adultos se desenvolvem através de suas experiências da vida, assim as das crianças evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras e das invenções de brincadeiras feitas por outras crianças e por adultos. Ao enriquecerem-se, as crianças ampliam gradualmente sua capacidade de exagerar a riqueza do mundo externamente real. A brincadeira é a prova evidente e constante da capacidade criadora, que quer dizer vivência. Os adultos contribuem, neste ponto, pelo reconhecimento do grande lugar que cabe à brincadeira e pelo ensino de brincadeiras tradicionais, mas sem obstruir nem adulterar a iniciativa própria da criança.”(1982, p. 163)


Dança e processo de formação cultural interligados resultam em exercícios de liberdade em que a criatividade toma lugar de destaque!


BIBLIOGRAFIA


BAITELLO Jr., N. O Animal que Parou os Relógios – Ensaios sobre Comunicação, Mídia e Cultura. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 1999, p. 25 – 31.

BOURCIER, Paul; tradução Marina Appenzeller. História da Dança no Ocidente. 2º edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global Editora, 2001.


WINNICOTT, D. W.; tradução Álvaro Cabral. A Criança e o Seu Mundo. 6º edição. Rio de Janeiro: JC editora, 1982, capítulo 22.


Lengos, Geórgia, Org. Póe o dedo aqui: reflexões sobre a dança contemporânea para crianças. São Paulo: Terceira Margem, 2007. Pg. 122 a 130.

 
 
 

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